segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Considerações textuais


Sobre a escrita do texto, é inegável sua qualidade em conteúdo e discussão, contudo, em algumas passagens, julgo possuir uma escrita um tanto quanto irônica. Esta escrita torna a leitura muito interessante, prendendo a atenção dos leitores. Esta escrita se faz de grande valia para um artigo científico a ser publicado em revista. Contudo, acredito ser uma escrita agressiva para um livro, podendo esta ser amenizada. 

São exemplos dessas passagens: no quarto parágrafo (introdução) diz: “À primeira vista, poderíamos não dar muita atenção à intrigante consigna que teve o mérito (duvidoso) de alimentar, em todo o mundo que se crê civilizado, em um novo misticismo [...]”; ainda, quando no parágrafo seguite trás: “[...] Os novos evangelistas então convocaram publicitários, artistas gráficos, gurus e até mesmo alguns pesquisadores [...].

Ainda, durante todo o texto, alguns termos e expressões são utilizadas sem uma explicação acerca dele. Em um artigo, essa explicação/significado tem que ser evitada devido ao limite de caracteres impostos pelas revistas. Contudo, em um capítulo de livro (material didático onde as pessoas buscam por informações mais completas), acredito serem necessárias algumas explicações em “notas de rodapé” ou “glossário”. Como um exemplo das situações em que isso acontece, deixo: na introdução, 8o parágrafo, “[...] Em outras oportunidades, tenho assinalado que, além das anomalias kuhnianas, os paradigmas científicos também apresentariam pontos cegos com signos de crise [...]”. Também ficam termos como “heurística”, “quantofrenia”.

Finalmente, algumas siglas aparecem seguidas de seu respectivo significado em inglês. Contudo, didaticamente, acredito ser importante também, além de inglês, seu significado em português.

Comentários sobre o texto

O texto acima, “O conceito de saúde: ponto cego da epidemiologia?”, de autoria do Prof. Dr. Naomar Monteiro de Almeida Filho, trás a tona uma temática bastante importante: a dificuldade da disciplina Epidemiologia e de seus pesquisadores em definir seu objeto de estudo: Saúde.

Epidemiologia, etimologicamente falando, vem do grego Epi (em cima de, sobre), demos (povo) e logus (estudo), que quer dizer, “estudo daquilo que se abate sobre a população”, e trás como base conceitual e base de estudo para o objeto saúde, o conceito de exposição, associado ao risco de adoecer. Esta semântica foi evidenciada por todo o texto, transparecendo a já dita dificuldade em definir saúde como ausência de doença, ou desvinculada desta.

De acordo o texto, o conceito de saúde proposto pela OMS como um “completo bem estar físico, mental e social”, se faz uma utopia frente às bases conceituais que atualmente encontramos no campo da saúde, bem como às bases metodológicas de pesquisa que são utilizadas pelos pesquisadores, uma vez que, para se medir saúde, faz-se necessário ter um ponto de corte, a definição de saúde, afastando a ocorrência do caso.

Corroborando com o que já fora dito, vários indicadores tem sido pensados tentando desvincular a questão “ausência de doença” da definição e da mensuração de saúde (QALY, DALY). Contudo, ambos trazem embutidos em suas equações matemáticas as noções de ausência de doença, seja referida pelo individuo pesquisado, seja delimitado pelo pesquisador (critérios de inclusão/exclusão, ponto de corte), o que me fez tender para uma definição de saúde (ou de doença) segundo Canguilhem, quando ele trás em sua obra “O normal e o patológico” que doença é apenas uma variação quantitativa (para mais ou para menos) dos estados de saúde.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Conceito de saúde: ponto cego da Epidemiologia?

SAÚDE: PONTO-CEGO DA EPIDEMIOLOGIA?
Atualidade de Guilherme Rodrigues da Silva

Naomar de Almeida Filho



No presente capítulo, apresento a proposição de que o conceito de ‘saúde’ constitui um ponto-cego para a ciência epidemiológica. No sentido de subsidiar teoricamente esse argumento, buscarei inicialmente avaliar as limitações da abordagem epidemiológica convencional, dependente de uma definição clínica de doença, para a construção do objeto Saúde. Em segundo lugar, discutirei brevemente as tentativas de produzir uma “epidemiologia da saúde” em bases simétricas à epidemiologia dos riscos. Em terceiro lugar, pretendo analisar criticamente as recentes formulações de viés econométrico que pretensamente reforçam e complementam o repertório epidemiológico destinado à medida da saúde.
Como ilustração, focalizarei especialmente a abordagem denominada DALY, patrocinada pelo Banco Mundial e pela OMS, considerada como protótipo da nova geração de indicadores de saúde, face à sua atualidade e crescente importância na definição de políticas de financiamento em saúde. Finalmente, concluo com uma avaliação das perspectivas atuais da Epidemiologia no sentido da incorporação do objeto complexo da saúde na sua pauta teórica e metodológica.

O Impasse da Clínica da Saúde
Pelos motivos que passo a expor nesta seção, considero que não há qualquer base lógica para uma definição negativa da Saúde, tanto no nível individual quanto no coletivo, mesmo em suas versões aparentemente mais avançadas e completas. Analisemos essa questão primeiro em relação ao nível individual, o que mais uma vez nos leva a revisitar as relações entre a Clínica e a Epidemiologia.
Com vistas a uma formalização preliminar da Saúde no nível individual, devemos considerar as seguintes proposições:
(a) “Nem todos os sujeitos sadios acham-se isentos de doença.”
(b)             “Nem todos os isentos de doença são sadios.”
Sabemos que indivíduos funcionais produtivos podem ser portadores de doenças, mostrando-se muitas vezes profusamente sintomáticos ou portadores de sequelas e incapacidades parciais. Outros apresentam limitações, comprometimentos, incapacitações e sofrimentos sem qualquer evidência clínica de doença. Além da mera presença ou ausência de patologia ou lesão, precisamos também considerar a questão do grau de severidade das doenças e complicações resultantes, com repercussões sobre a qualidade de vida dos sujeitos. Em uma perspectiva rigorosamente clínica, portanto, a Saúde não é o oposto lógico da doença e, por isso, não poderá de modo algum ser definida como “ausência de doença”.
Como corolário, tem-se que os estados individuais de saúde não são excludentes vis à vis a ocorrência de doença. Creio que nesse aspecto podemos mesmo parafrasear Caetano Veloso, constatando que “de perto ninguém é sadio”. Ou ainda, recorrendo a Canguilhem (1966), devemos admitir que o oposto lógico da patologia não será de modo algum a Saúde.
Partamos do princípio de que a Saúde pode ser tomada como um atributo individual e, como tal, vulnerável a processos de mensuração. Seria necessário, então, identificar os elementos constitutivos e daí os sinais e sintomas do “síndrome saúde”, a fim de verificar a presença, ausência, nível ou grau de pertinência dos indivíduos perante um construto empírico definido de modo sistemático e estável (Noack, 1987). Trata-se evidentemente de uma proposta de tratamento simétrico do problema geral da identificação de casos de doença na pesquisa epidemiológica convencional, com a ressalva de que os sinais e sintomas de “saúde” não podem, nesse caso, expressar mera ausência de doença.
Derivadas inicialmente da definição original da OMS, as primeiras tentativas para tratar empiricamente essa questão tomaram ao pé-da-letra a suposição de que a ‘saúde’ seria composta por três dimensões de bem-estar: físico, mental, social (Davies, 1977; Patrick & Erikson, 1993). Como já dispunham de alguns questionários de detecção de casos em inquéritos de morbidade psiquiátrica, concentraram-se no aperfeiçoamento destes e na criação de instrumentos capazes de medir a capacidade física e o bem-estar social. No primeiro caso, buscou-se recuperar os conceitos de comprometimento, limitação, incapacidade e desvantagem, agora revestidos de uma certa positividade sob a forma de função, habilidade, capacidade e desempenho (Robine, 1999). No segundo caso, a teoria do suporte social (Kaplan, Cassel & Gore, 1977) passou a ser considerada como recurso chave para a medida da chamada “saúde social” através dos seus componentes principais: interações interpessoais e participação social. Formulações subseqüentes (Corin, 1995) subdividiram ou re-estruturaram as dimensões da saúde positiva individual porém a estratégia inicial permaneceu substantivamente inalterada.
Portanto, para medir diretamente o grau de saúde dos indivíduos, de modo similar aos procedimentos de screening para diagnóstico de doenças, têm-se desenvolvido e testado instrumentos estruturados e simplificados capazes de reconhecer os estados de “completo bem-estar físico, mental e social” dos sujeitos. Digna de nota é a disponibilidade atual de escalas e inventários com essa finalidade, apresentando as mais diversas características metodológicas. Apenas para dar uma idéia dessa extraordinária proliferação, os primeiros guias sistemáticos desses instrumentos (McDowell & Newell, 1987; Bowling, 1997) já listavam 71 diferentes tipos de escalas e questionários para a medida do estado individual de saúde, desde os pioneiros CMI (Cornell Medical Index) e GHQ (General Health Questionnaire), respectivamente desenvolvidos nas décadas de 1960 e 1970, até os contemporâneos EuroQol e QWBS (Quality of Well-Being Scale).
Conforme tive a pretensão de analisar em A Clínica e a Epidemiologia (Almeida Filho, 1997), o aporte clínico contribui para a abordagem epidemiológica com critérios e operações de identificação de caso, determinando quem é e quem não é portador de uma dada patologia ou espécime de certa condição, na amostra ou na população estudada. Por esse motivo, o conceito de Risco constitui uma aproximação de segunda ordem do fenômeno da doença em populações, em última instância mediada pela Clínica como definidora da heterogeneidade primária do subconjunto [doentes].
Há um consenso em relação à centralidade da noção de ‘doença’ para o discurso científico e práxico da Clínica (Foucault, 1963; Canguilhem, 1966; Boorse, 1975; Castiel, 1994). Clavreul (1983) chega a apontar uma incapacidade heurística da Clínica em definir os estados fisiológicos de saúde, salvo como ausência ou negação de doença. Ora, se a Clínica desenvolve-se como saber justificado pela noção de patologia, incapaz de reconhecer positivamente a presença ou ocorrência da saúde nos sujeitos individuais, pouco poderá fazer para colaborar na constituição de uma “epidemiologia da saúde” (Galdston, 1953). Dessa maneira, o fracasso da Clínica em subsidiar medidas positivas de saúde individual em princípio inviabilizaria a definição da heterogeneidade primária do subconjunto [sadios], imprescindível para qualquer abordagem epidemiológica da saúde coletiva, caso definida de modo rigoroso.
À guisa de balanço crítico dessa vertente, gostaria de assinalar os seguintes pontos:
No nível individual, a Saúde não é um análogo inverso da doença. Se, para cada doença, observa-se um modo prototípico de adoecer (cujo reconhecimento implica uma semiologia clínica), há infinitos modos de vida com saúde, tantos quantos seres sadios.
Ainda está por se estabelecer a validade conceitual dos construtos tomados como proxy da Saúde. A persistir tal lacuna, a investigação do desempenho operacional dos instrumentos correspondentes sempre encontrará dificuldades metodológicas sérias, principalmente em relação ao desenho de estudos de validade.

A Miséria da Epidemiologia da Saúde
No nível coletivo, com menos propriedade ainda se pode falar em uma definição negativa de saúde. Podemos declarar (com algum esforço retórico) que certo indivíduo é sadio porque nele não encontramos sinais de doença ou que um dado tipo de comportamento é saudável na medida em que não se constitui em fator de risco para alguma enfermidade. Mas o que seria uma família sadia ou uma cidade saudável? Certamente que, ao indicar exemplares de uma ou outra condição, não estaremos falando de um grupo familial formado por indivíduos livres de enfermidade ou de uma comunidade em que ninguém morre ou adoece.
Como preliminar, gostaria de propor que o máximo de aproximação que a ciência epidemiológica tem se permitido consiste em definir Saúde como atributo do grupo de não-doentes, entre os expostos e os não-expostos a fatores de risco, em uma população definida. Na prática, a maioria dos manuais epidemiológicos é até bem menos sutil, chegando-se a definir a saúde diretamente como “ausência de doença”. Na mesma medida em que o contingente de acometidos por uma dada patologia constitui o subconjunto populacional de referência para o cálculo do Risco, uma ‘saúde epidemiológica’ implicaria, por conseguinte, meramente o contradomínio desse subconjunto:
                        Saúde = (1 - Risco)
Para melhor compreender essa questão, é preciso também discutir o fenômeno da comorbidade. O termo ‘comorbidade’ tem sido usado na Clínica para designar a existência concomitante de diferentes condições patológicas em um mesmo indivíduo (Crabtree et alii, 1999). No âmbito epidemiológico, é bastante conhecido o processo equivalente de clustering de riscos em certos sujeitos e grupos populacionais, quando a presença de uma dada patologia aumenta a probabilidade de ocorrência de outras doenças naquele grupo suscetível (Chen et alii, 1999).
Não obstante as evidências em favor da complexidade das situações de saúde, os estudos epidemiológicos normalmente cobrem doenças específicas, buscando levantar o perfil sócio-demográfico dos expostos e dos doentes de uma dada patologia mais do que propriamente descrever o “perfil patológico” (repertório de doenças e de condições relacionadas à saúde) de um dado grupo social. A soma de todos os casos de todas as doenças aparentemente não interessa muito à investigação epidemiológica. É quase irônico constatar que somente nesse caso seria possível visualizar uma verdadeira (porém trivial) definição negativa de Saúde, da seguinte maneira:
                        Saúde = (1 - Σ Riscos)
Para a estimativa de indicadores de níveis coletivos de saúde, no sentido positivo do construto, será imperativo superar uma limitação primordial da abordagem epidemiológica, originalmente restrita à avaliação dos riscos de doença ou de agravos. Assim, deve-se aperfeiçoar a sua capacidade de estimar medidas do grau de “morbidade negativa” ou de mensurar saúde como um análogo econométrico.
Estamos falando aqui de duas estratégias distintas. Trata-se, no primeiro caso, de desenvolver metodologias e tecnologias capazes de avaliar positivamente os níveis de salubridade em uma dada população. No segundo caso, pretende-se desenvolver metodologias e técnicas para abordar a saúde enquanto o inverso do “volume global de patologia”.
Analisemos brevemente a primeira dessas estratégias.
As técnicas de avaliação da saúde individual podem ser empregadas como fontes de elementos para a mensuração dos níveis coletivos de saúde tomados como somatório dos estados individuais de saúde. Na sua prática de produção de informação, a Epidemiologia tem instrumentalizado um repertório de “indicadores de saúde” que se baseia na contagem de doentes (indicadores de morbidade) ou de falecidos (indicadores de mortalidade). Propõe-se então, nesse caso, incluir entre as estratégias da Epidemiologia a contagem de indivíduos sadios, para isso desenvolvendo ou adaptando tecnologias pertinentes, no sentido analisado na seção anterior. Disso poderá resultar a derivação de indicadores de “salubridade”, equivalentes aos clássicos indicadores de morbidade (Uemura, 1987). Nesse caso, contar-se-ia sadios para o cálculo de um certo risco de saúde, do mesmo modo como se computa doentes ou óbitos para a produção de indicadores de risco de doenças ou de mortalidade. Tal estratégia efetivamente não tem sido enfatizada no campo da investigação epidemiológica, limitando-se a poucas avaliações de inquéritos domiciliares locais ou nacionais.
Para resumir um ponto de vista crítico em relação a essa estratégia de medida da saúde coletiva, gostaria de considerar o seguinte:
(a) Deve-se questionar se haverá fundamentação lógica na aplicação em nível agregado de construtos supostos como expressão da saúde de sujeitos individuais (função, desempenho, qualidade de vida, satisfação, bem-estar, felicidade etc.).
(b) Mesmo considerando a hipótese de uma demonstração convincente da validade dessa transposição, é lícito supor que a saúde coletiva significará sempre mais do que a somatória das saúde individuais.
(c) A idéia de “risco de saúde” não é simétrica em relação à noção de risco de doenças porque, dentro do chamado raciocínio epidemiológico, as doenças são tomadas como eventos ou episódios, mensuráveis por meio de probabilidades condicionais de ocorrência.
Na segunda estratégia para a medida da saúde coletiva, propõe-se o desenvolvimento de medidas do “capital sanitário” ou da “carga de doença” de populações ou sociedades. As seções seguintes analisam mais detidamente esta alternativa.

Uma Pequena Ajuda da Economia da Saúde
Apesar das promessas de uma certa “epidemiologia da saúde” (Galdston, 1953; Terris, 1980), que chegou a inspirar a proposta de uma “sanometria” (Goldberg et alii, 1979), dentre os indicadores ditos de saúde, apenas a medida denominada “Esperança de Vida” (às vezes equivocadamente designada por vida-média) e seus sucedâneos suportam uma definição não-residual de saúde. Mesmo listados nos manuais mais respeitáveis da ciência epidemiológica, trata-se de indicadores mais demográficos que epidemiológicos, ainda assim também calculados com base em dados de mortalidade. Abordam anos de vida vividos, em geral sem considerar o estado ou nível de saúde desses anos ou, para incluir um conceito em moda atualmente, sem nada referir sobre a qualidade de vida dos sujeitos.
Na década de 60, Linder (1966) já defendia a necessidade de indicadores de saúde equivalentes ao GNP (gross national product), propondo desenvolver uma medida que denominou de GNHI (Gross National Health Index). Sanders (1964) havia anteriormente  elaborado uma fórmula matemática de ajuste para a capacidade funcional de estimativas de vida-média, resultando em uma medida combinada de “anos-de-vida-efetiva”, que foi aperfeiçoada por Moriyama (1968), introduzindo técnicas de análise de tábuas de vida. Sullivan (1971), com dados do censo e do National Health Interview Survey, pela primeira vez aplicou-a para computar medidas de expectativa de vida na ausência de incapacidades ou limitações. O aperfeiçoamento desta abordagem, incorporando distintas medidas de incapacitação, permitiu o desenvolvimento de toda uma família de indicadores de saúde geral, como por exemplo o YHL (Years of Healthy Life), usado nos Estados Unidos desde a década de 1990 (Erikson, Wilson & Shannon, 1995).
No contexto de um ambicioso programa de avaliação tecnológica destinado a orientar as políticas de alocação de recursos para o NHS (National Health Service) da Inglaterra, uma equipe de pesquisa em Economia da Saúde da Universidade de York, sob a liderança de Alan Williams, desenvolveu o conceito de “qualidade de vida ligada à saúde” (health-related quality of life), assumidamente vinculado a uma teoria utilitarista da saúde.
A abordagem metodológica correspondente (Williams, 1985, 1993, 1996) resultou em um indicador da saúde positiva denominado QALY (quality-adjusted life years), estimado a partir do cálculo acumulado (por área geográfica ou divisão geopolítica) dos anos com qualidade de vida não-vividos por motivo de doença, incapacidade ou morte. Para as estimativas devidas, foi preciso classificar e ponderar distintas combinações de níveis de desconforto (distress) e incapacitação (disability), através de um intrumento de avaliação aplicado a “julgadores” da comunidade. A dimensão ‘desconforto’ divide-se em quatro níveis, variando de “nenhum desconforto” a “desconforto severo”, enquanto que a dimensão “incapacitação” classifica oito estágios, desde plena capacidade até “inconsciência”.
Com base nesses parâmetros, podia-se estimar o excedente de qalys produzidos por uma dada intervenção de saúde comparativamente em relação a outra tecnologia ou à ausência de intervenção. Assim, a efetividade de procedimentos destinados a restabelecer níveis satisfatórios de saúde com qualidade de vida poderia ser avaliada com maior precisão, empregando-se a unidade de medida proposta. Um qaly significa um ano em perfeita saúde (nenhum desconforto; plena capacidade) porém pode também corresponder a dois anos com 0,50 qaly ou quatro anos com 0,25 qaly do desempenho potencial do sujeito (equivalente a “saúde”, caso aceitemos uma definição utilitarista deste conceito). Várias investigações nessa linha têm avaliado o impacto de tecnologias médicas (Loomes & Mackenzie, 1989), com fascinantes resultados: por exemplo, um transplante cardíaco em média cria 4,5 qalys, pouco menos do que uma série de hemodiálises (5 qalys) e equivalente a uma cirurgia de reconstituição de quadril (4,5 qalys). No entanto, o custo médio de um transplante é muitas vezes maior do que toda uma série de hemodiálises necessárias no período de sobrevida, já computados os ganhos correspondentes na qualidade de vida.
Sem dúvida, trata-se de uma proposição bem fundamentada teoricamente, considerando uma forma de definição positiva de saúde qualitativamente distanciada de qualquer concepção negativa da saúde referida à noção de patologia. O próprio Williams explicita o problema em um texto recente (1996, p. 1801):
Um tópico fundamental para esclarecer o que está em questão é o que se entende por ‘saúde’. No contexto do QALY, trata-se de qualquer aspecto relativo à qualidade de vida que seja valioso para as pessoas, além da duração daquela vida. Isso deve ser claramente diferenciado de uma estrita definição clínica de saúde.
O conceito do QALY, interessante sem dúvida, revela-se potencialmente útil para os seus objetivos primários de incorporar maior rigor e sofisticação às análises de custo-efetividade. Além disso, a sua concepção propiciou um importante desenvolvimento na teoria da mensuração em saúde, considerando as grandes possibilidades do seu emprego para medidas positivas da saúde individual como capacidade vital e qualidade de vida, de certo modo aí reduzidas a uma “unidade monetária” de troca, comparação e avaliação do valor diferencial de procedimentos restauradores ou promotores de saúde.
A abordagem do QALY tem se mostrado vulnerável a importantes críticas, de base política, sociológica, antropológica e ética (Loomes & Mackenzie, 1989; Fryback, 1997), que não cabe aprofundar agora. De todo modo, frente à complexidade do processo de estabelecimento dos seus critérios e parâmetros, e considerando o caráter qualitativo e quase idiossincrático do construto “qualidade-de-vida-relativa-a-saúde”, deve-se reconhecer as dificuldades para o seu emprego em larga escala.
Tais restrições se aplicam especialmente a contextos sanitários com reduzido grau de desenvolvimento político e institucional, caracterizados por precários sistemas de informação em saúde. Justamente esses contextos são os que mais sofrem os efeitos das diversidades étnico-culturais e das desigualdades sociais. Em outras palavras, os conceitos de valor, utilidade, desconforto, incapacidade, qualidade de vida apresentam-se tão “ligados à cultura” e socialmente determinados que se pode questionar a validade teórica e o potencial comparativo de estratégias de medida da saúde como a abordagem do QALY.

Daly: Carga de Doença ou Estoque de Saúde?
Em 1992, no processo de preparação do World Development Report 1993: Investing in Health (World Bank, 1993), o Banco Mundial contratou uma equipe da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, coordenada pelo economista Christopher Murray, para viabilizar uma metodologia destinada a medir a “carga global de doença” (GBD – global burden of disease) das populações. Como pré-requisito fundamental, estabeleceu-se que os componentes de morbidade e mortalidade deveriam estar integrados em um mesmo indicador. Essa metodologia seria também capaz de empregar dados epidemiológicos e estatísticas vitais em geral disponíveis, mesmo em países ditos subdesenvolvidos, de modo a permitir comparações internacionais, além de possibilitar avaliações do impacto dos investimentos internacionais e das políticas e programas de saúde. Ostensivamente inspirado no conceito do QALY, o novo indicador foi batizado de DALY (Disability-Adjusted Life Years) e definido como uma medida “do tempo vivido com incapacidade e do tempo perdido devido à mortalidade prematura” (Murray, 1994).
O DALY constitui um indicador composto na medida em que combina dados de mortalidade (anos de vida perdidos por óbito precoce) com dados de morbidade (grau e tempo de incapacidade devido a uma dada patologia) (Murray, 1994; Murray & Lopez, 1996). Estima-se os anos de vida perdidos devido à mortalidade precoce tomando como padrão as expectativas de vida média de 80 anos para homens e 82,5 anos para mulheres. O tempo vivido sob incapacidade é calculado por meio de um conjunto de ponderações que supostamente refletem uma redução na capacidade funcional, por sua vez resultante de estudos de carga-de-doença específicos para cada morbidade. Para cada óbito ou caso registrado, computam-se os dalys correspondentes a serem acumulados para a estimativa das cargas-de-doença referentes a patologias específicas ou a agregados geopolíticos, como regiões, países ou continentes (Murray, 1994; Murray & Lopez, 1996).
A principal novidade da proposta do DALY consistia na integração dos indicadores AVI – “anos vividos com incapacidade (YLD – years lived with disability) e AVP – “anos de vida perdidos” (YLL – years of life lost) em uma única medida de “carga de doença” (Murray, 1994, 1996; Murray & Lopez, 1996). O conceito de ‘incapacidade’ passa a ser portanto crucial para o novo indicador proposto. Recuperando o modelo de progressão linear (doença, patologia, manifestação, deficiência, incapacidade, desvantagem) da International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps (WHO, 1980), o conceito do DALY baseia-se na definição de incapacidade com “impacto da deficiência sobre o desempenho individual” (Murray & Acharya, 1997).
Na sua proposta original (Murray, 1994), o componente incapacidade do DALY cobria quatro domínios da vida individual (procriação, ocupação, educação e recreação) e seis graus de severidade. As avaliações de grau de incapacidade por patologias selecionadas como “marcadores” eram realizadas por grupos de consenso de experts (primeiro, alunos internacionais de Harvard e depois profissionais de saúde). Posteriormente, após avaliações por novos grupos de consenso internacionais, empregando-se o método do “person trade-off”, ampliou-se a definição para “sequelas incapacitantes de qualquer natureza” e acrescentou-se mais um grau de severidade da incapacitação (Murray & Acharya, 1997).
Em sua expressão mais direta, algebricamente a fórmula do DALY é intrigantemente simples:
[1.0]                DALYi = AVP + AVI
sendo AVP = anos de vida perdidos, AVI = anos vividos com incapacidades, tomando i como a designação da patologia ou grupo de morbidade para o qual se computam os casos ou óbitos.
Entretanto, visando reforçar as propriedades econométricas do indicador, os formuladores da concepção do decidiram incorporar dois tipos de função de correção: a) um desconto para anos ainda não vividos, equivalente à noção de taxa de juros para pagamentos futuros; b) uma ponderação por idade, destinada a corrigir o valor dos anos vividos em relação a cada etapa do ciclo de vida. Pode-se assim derivar para cada AVP ou AVI diferentes alternativas de correção.
Para o cálculo do componente AVP do DALY, na sua formulação mais simplificada, emprega-se a seguinte equação:
[2.0]                AVP [0, 0] = Va
onde V equivale diretamente à expectativa de vida na idade a (calculada em relação às expectativas de vida médias de 80 e 82,5 anos, respectivamente para homens e mulheres), sem desconto nem correção.
Com a ponderação por idade, aplicando-se a função de correção C, temos
[2.1]    AVP [0, k] = (kCe- βa / β2) e - βV [- β (V + a) - 1]
- [-β - 1] + [V (1- k)]
Finalmente, aplicando-se uma taxa de desconto d 0, a fórmula completa desse componente do DALY é a seguinte:
AVP [d, k] = [kCeda / (d + β)2 e – (d + β) (V + a) [- (d + β) (V + a) - 1]
- [- (d + β) a - 1] e – (d + β) a  + (1 - e d V) [(1- k) / d]
[2.2]
Para o cálculo do componente AVI do DALY, por sua vez, a expressão mais simples corresponde à seguinte fórmula:
            AVI [0, 0] = I (D0,0)
[3.0]
onde I = peso relativo da incapacidade e D0,0 = duração da incapacidade sem correções nem descontos. De modo análogo ao cálculo dos AVP, apresentado acima, podemos estimar os AVI com correção por idade e, além disso, com desconto por anos vividos sem incapacidade no futuro.
No primeiro caso, temos:
            AVI [0, k] = I (D0,k)
[3.1]
onde D0,k equivale à duração da incapacidade corrigida por idade, na condição de d = 0, calculada de modo equivalente a [2.1] acima.
No segundo caso, temos
            AVI [d, k] = I (Dd,k)
[3.2]
sendo que Dd,k indica duração média da incapacidade corrigida por idade e com desconto por anos com incapacidade vividos no futuro (d 0), calculada de maneira similar a [2.2] acima.

Para a Crítica do DALY
Parece-me apropriado, para os objetivos do presente ensaio, revisar em mais detalhe alguns supostos metodológicos (inclusive matemáticos) do conceito de DALY que, nos termos dos seus formuladores (Murray, 1994, 1996; Murray & Lopez, 1996; Murray & Acharya, 1997), representaria tanto uma medida de carga de doença (morbidade e mortalidade) quanto um indicador de saúde mais transparente do ponto de vista ético. Esse destaque justifica-se, por um lado, pela enorme influência que tal proposta vem exercendo no panorama atual da política de saúde, em todo o mundo. Por outro lado, a proposta do DALY representa a mais importante tentativa recente de avançar a metodologia epidemiológica para superar o conceito de risco e seus correlatos. Em minha opinião, o debate em torno do DALY constitui a principal controvérsia epidemiológica dos anos 90, talvez equivalente aos debates em torno da causalidade nos anos 70 (Nordenfeld & Odelstad, 1984) e à polêmica sobre a epidemiologia clínica na década de 1980 (Almeida Filho, 1997).
Não obstante o suporte ideológico, político e financeiro que uma instituição do peso do Banco Mundial vem concedendo a essa proposição, contra ela avolumam-se críticas teóricas e metodológicas, principalmente em relação aos seguintes aspectos:
Reduzem a saúde a perfis de doenças, com indicadores unidimensionais da situação de saúde, sabidamente complexa e multifacetada, ao tempo em que negligenciam elementos não-quantitativos essenciais para a determinação dos níveis de saúde (WHO, 1996).
Condensam medidas de mortalidade e de morbidade com graus heterogêneos de precisão, resultando em uma acurácia ilusória (WHO, 1996; Barker & Greene, 1996; Fryback, 1997). Os indicadores assim produzidos padecem de excessivo nível de agregação, escamoteando importantes desigualdades em saúde, principalmente segundo condições de vida (Anand & Hanson, 1997).
Baseiam-se em um número excessivo de pressupostos e ajustes arbitrários (pesos, descontos e correções) que comprometem a objetividade da medida, distanciando-a das realidades concretas de saúde que supostamente constituem seu objeto privilegiado (WHO, 1996; Barker & Greene, 1996; Anand & Hanson, 1997).
Avaliando globalmente a questão, Barker & Greene (1996) comentam que essa proposta termina forçando um recuo ao modelo biomédico de cuidado à saúde. Porém as críticas mais comprometedoras do projeto metodológico do consórcio Banco Mundial - Universidade de Harvard dizem respeito aos aspectos éticos e políticos do sistema de financiamento e tomada de decisão implícitos no Projeto GBD (Anand & Hanson, 1997; Daniels, 1997; Brock, 1997). Algumas dessas críticas começam a surgir de dentro do próprio Banco Mundial (Hammer, 1999, p. 8):
Vários dos pressupostos para cálculo do DALY podem bem violar julgamentos éticos. [...] Em particular, simplesmente somar dalys em indivíduos implica tratar a perda da vida inteira de uma pessoa como a mesma coisa que a perda de um dia de cada um. [...] Se isto faz sentido ou não, não é um problema matemático dado que as suas implicações são debitadas inteiramente às leis da adição. [...] Temos bons motivos para lidar com dinheiro dessa maneira porém a extensão desse método para comparar as vidas de indivíduos que vivem em momentos diferentes é obviamente mais problemático.
Enfim, questiona-se se efetivamente a metodologia DALY atinge os objetivos propostos, na medida em que promete algo bastante mais complexo do que estimar impacto de políticas ou programas de saúde, como por exemplo tornar-se a base técnica de toda uma revolução no conceito de política de saúde, designado pomposamente como “evidence-based health policy” (Murray & Lopez, 1996; Rada, Rati & Howden-Chapman, 1999), através da avaliação da “carga global de doença” de uma dada sociedade. O Subcommittee on Health Measurement da Organização Mundial da Saúde liminarmente já indicava que, em geral, os indicadores de base econométrica como o DALY na verdade “falham em refletir a carga de doença em um país ou em uma comunidade” (WHO, 1996).
Os formuladores do DALY têm se empenhado em considerar essas críticas, absorvendo-as no aperfeiçoamento da proposta ou buscando rebatê-las, nesse caso com reduzido sucesso. Murray & Lopez (1996) apresentaram um exercício de aplicação do método DALY que incorporava maior padronização para os diferentes componentes da medida. De certa forma respondendo ao ponto (b) acima, Murray (1996) argumenta ainda que, mais que medir iniqüidades em saúde, deve-se desenvolver e aplicar estratégias de promoção da equidade, para o que se necessita de medidas como o DALY. Considerando a crítica (a), Murray & Acharya (1997) defendem que um DALY contextualizado e multifacetado seria “indesejável e inviável”, não atendendo aos requisitos de robustez e comparabilidade exigidos de um indicador dessa natureza. Os mesmos autores, incapazes de rebater todos os argumentos de Anand & Hanson (1997), sem dúvida os críticos da proposta DALY de maior densidade metodológica, recomendam que os planejadores e tomadores de decisão que duvidarem dos pressupostos do método usem medidas sem ajustes e sem correções em vez das versões corrigidas (respectivamente DALY[0,0], DALY[0,k] e DALY[d,k], como vimos acima).
Em minha opinião, é preciso considerar que, por um lado, em comparação com os seus antecessores da linha QALY, o DALY realmente representa uma simplificação no sentido de que opera com uma única dimensão de medida individual de saúde, o nível de comprometimento funcional, em lugar de uma escala subjetiva de valores combinados de desconforto e incapacidade (Barker & Greene, 1996). Por outro lado, implica também uma ampliação de escopo da metodologia proposta, na medida em que se apresenta sem hesitação como um quantificador macro-econômico de “volumetria” da morbi-mortalidade (Murray & Acharya, 1997).
Sejamos pelo menos justos com os objetivos dos criadores e promotores dessa abordagem. O termo “carga global de doença” é bastante claro e preciso no sentido de definir a doença e não a Saúde como objeto: de modo algum induz a falsas promessas. Esse aspecto é conscienciosamente assinalado pelos formuladores do conceito DALY (Murray & Acharya, 1997, p. 705), da seguinte maneira:
Não obstante, deve-se notar que em geral um QALY implica um conceito positivo, um análogo em relação a um ano de vida saudável. Um DALY é um conceito negativo, um ano de vida saudável perdido.  (Itálicos meus)
Podemos concordar que QALY e DALY de facto constituem medidas globais de morbi-mortalidade e não indicadores do estoque de saúde de uma dada sociedade. Curiosamente, ambas as abordagens utilizam anos vividos com qualidade de vida ou sem incapacidade (que é um índice grosseiro de saúde) para avaliar o impacto social de patologias e das tecnologias destinadas à sua prevenção, controle ou erradicação. Trata-se de uma aplicação da esquisita noção de doença = ausência de saúde, invertida da concepção convencional de saúde como ausência de doença.

Conclusão: Da Quantofrenia à Sanologia?
Aparentemente esgotam-se os argumentos que validam heurística e eticamente o repertório das propostas de abordagens metodológicas destinadas à avaliação direta dos níveis coletivos de saúde através da panacéia dos indicadores unificados, superando uma fase que, nos seus primórdios, foi astutamente designada por Harald Hansluwka (1985) como “the other extreme of quantophrenia”.
Devemos, portanto, demandar da abordagem econométrica da saúde o que ela tem de melhor a oferecer, principalmente nas áreas de avaliação tecnológica e microeconomia em saúde. Isto significa aceitar as suas limitações enquanto instrumento de mensuração do grau de “salubridade” global de uma dada população.
Iniciamos o nosso percurso avaliando os resultados de esforços no sentido de aperfeiçoar formas de mensuração de um certo “síndrome da saúde”, como se viável fosse o projeto de lidar com Saúde enquanto mera ausência de doença. Abordamos criticamente a proposta teórica e metodológica de uma “sanometria”, apontando seus impasses e limites. Concluímos que as proposições mais atuais e aparentemente mais sofisticadas, como as estimativas da “qualidade de vida relativa a saúde” e a abordagem do GBD, não passam de medidas da doença e seus efeitos (incapacidade e mortalidade).
Creio que talvez seja possível ainda cultivar alguma expectativa em relação aos conceitos correlatos de HALE (health-adjusted life expectancy), em desenvolvimento no Canadá (Wolfson, 1996), e DFLE (disability-free life expectancy), aperfeiçoado e adotado na França (Robine, Romieu & Cambois, 1999). Constituem, esses sim, “verdadeiros” indicadores de vida vivida com saúde, pelo menos no sentido de que descartam períodos vividos com doença ou incapacidade para tentar estimar uma expectativa média de anos de vida saudável para populações ou grupos sociais.
Em qualquer dos casos, o desenvolvimento teórico e principalmente metodológico necessário para formalizar e aplicar essas propostas na análise de situações concretas de saúde ainda se mostra insuficiente. Mas pelo menos se pode reconhecer um movimento no sentido de definir pragmaticamente (ou quiçá trivialmente, diria um crítico mais rigoroso) saúde como vida com saúde, ou seja, anos vividos com funcionalidade produtiva e social (Nordenfeld, 1987).
Não obstante os problemas e limitações apontados, todo esse esforço representa uma incalculável contribuição no sentido de avançar o processo teórico da saúde. Temos que considerar o potencial heurístico acumulado nas interfaces entre as ciências sociais e as ciências da saúde. Penso que aí será possível encontrar algumas condições objetivas para a formulação de uma proposta de, primeiro, sistematização e, em seguida, de meta-síntese do problema científico da Saúde.
Assim, a despeito das boas intenções, sinceros esforços e denodados manifestos, aparentemente resta à Epidemiologia a alternativa de abandonar o conceito clássico de Risco e construir um novo objeto-modelo. Para remover o incômodo ponto-cego objeto deste ensaio, a disciplina terá que realizar um imenso investimento de formulação teórica. Nesta etapa ainda preliminar, será necessário produzir esquemas explicativos meta-sintéticos ancorados na realidade concreta de saúde.
Não tenho dúvidas de que o objeto possível da saúde-doença-cuidado é um desses objetos heurísticos complexos, plurais e sensíveis aos contextos, que só se define em sua configuração total, já que a apreensão de cada um dos seus elementos e dimensões não nos dá acesso à integralidade deste objeto (Almeida Filho, 1999). Tenho dúvidas, isso sim, de se a Epidemiologia, tal como a conhecemos, terá condições de enfrentar esse desafio. Se nosotros epidemiologistas quisermos e se os nossos outros deixarem, poderemos reformá-la, reforçá-la, revolucioná-la. Mas será este esforço suficiente para fazer a nossa ciência enfim enxergar o seu ponto-cego? Ou talvez, num processo de construção histórica, será mesmo necessário inaugurar uma nova ciência para esse novo/velho objeto complexo? Poderíamos, quem sabe, batizá-la de Sanologia.
Em conclusão, face ao fracasso do projeto de uma “epidemiologia da saúde”, pelo menos em bases simétricas à “epidemiologia dos riscos” que conhecemos, e frente às limitações da nova geração de indicadores ditos de saúde, o desafio mais crucial no processo de aggiornamento da Epidemiologia será justamente a questão do objeto Saúde. No presente momento, é preciso urgente avançar para um tratamento epistemológico mais rigoroso deste intrigante ponto cego, objeto-modelo potencial para uma nova definição de Saúde-Doença em sociedades concretas, buscando produzir reflexões e indicações conceituais e metodológicas capazes de enriquecer a pesquisa e a prática no campo da Saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1.       Abed LC. La Enfermedad en la História. Cordoba, Direccion General de Publicaciones, Universidad Nacional de Cordoba, 1993.
2.       Almeida Filho N. A Clínica e a Epidemiologia. Salvador-Rio de Janeiro, APCE-ABRASCO, 1997 (2a. Edição).
3.       Almeida Filho N. Epidemiologia Sem Números. Rio, Campus, 1989.
4.       Almeida Filho N. The Complex Object: Health. In: Sayers B. Health Assessment – complexity, trends and opportunities. Geneva, WHO – Global Advisory Committee for Health Research, 1999 (Appendix II).
5.       Almeida Filho N. The paradigm of complexity: applications in the field of public health. In: Advisory Committee on Health Research. A Research Policy Agenda for Science and Technology to Support Global Healtlh Development. World Health Organization, Geneve, 1997, p.1-15.
6.       Anand S, Hanson K. Disability-Adjusted Life Years: A Critical Review. Journal of Health Economics 16:685-702, 1997.
7.       Anderson R. Health Promotion: An overview. European Monographs in Health Education Research 6:1-126, 1984.
8.       Arouca A. S. O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. Campinas, UNICAMP, 1975 (Tese de Doutoramento).
9.       Barker C, Greene A. Opening the debate on DALYs. Health Policy and Planning 11(2):179-183, 1996.
10.    Berlinguer G. A Doença. São Paulo, CEBES-Hucitec, 1988.
11.    Boorse C. On the distinction between Disease and Illness. Philosophy and Public Affairs 5:49-68, 1975.
12.    Bowling A. Measuring Health – A review of quality of life measurement scales. Buckingham, Open University Press, 1997.
13.    Brock D. Ethical Issues in the Development of Summary Measures of Population Health Status. Workshop on Summary Measures of Population Health Status, Institute of Medicine, National Academy of Sciences, 1997.
14.    Callahan D. The WHO Definition of Health. The Hasting’s Center Studies, v. I, no. 3, 1973.
15.    Canguilhem G. Le Normal e le Pathologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1966 [1943].
16.    Castiel L.D. O Buraco e o Avestruz - A singularidade do adoecer humano. Campinas, Papirus, 1994.
17.    Chen W, Srinivasan SR, Elkasabany A, et al. Casdiovascular risk factors clustering features of insulin resistance syndrome in a biaracial population of children, adolescents and young adults. American Journal of Epidemiology 150(7):667-674, 1999.
18.    Clavreul J. A Ordem Médica. São Paulo: Brasiliense, 1980. Primeira edição: 1978.
19.    Corin E. The social and cultural matrix of health and disease. In: R. G. Evans, M. L. Barer e R. Marmor (eds.) Why are some people healthy and others not? The determinants of health of populations. Hawthorn, NY: Aldine de Gruyter, 1995: 93 - 132.
20.    Crabtree HL, Hildreth AJ, O'Connell JE, et al. The Comorbidity Symptom Inventory: A combined inventory of disease and assessment of symptom severity. Journal of the American Geriatric Association 49(9):102-112, 1999.
21.    Daniels N. Distributive Justice and the Use of Summary Measures of Population Health Status. Workshop on Summary Measures of Population Health Status, Institute of Medicine, National Academy of Sciences, 1997.
22.    Davies DF.  Progress toward the Assessment of Health Status. Preventive Medicine 4:282-295, 1977.
23.    Erikson P, Wilson R, Shannon I. Years of Healthy Life. Healthy People 2000 Statistical Notes. Hyattsville, National Center for Health Statistics/CDC/DHHS, April,1995.
24.    Foucault M. Naissance de la Clinique: une archéologie du régard médical. Paris, P.U.F., 1963.
25.    Fryback D. Health-Related Quality of Life or Population Health Measures: A Brief Overview of the HALY Family of Measures. Workshop on Summary Measures of Population Health Status, Institute of Medicine, National Academy of Sciences, 1997.
26.    Galdston I (ed.) The Epidemiology of Health. New York, Health Education Council, 1953.
27.    Goldberg M, Dab W, Chaperon J, Fuhrer R, Gremy F. Indicateurs de santé et “sanométrie”: les aspects conceptuels des recherches récentes sur la mesure de l’état de santé dune population. Revue d’Epidémiologie et Santé Publique 27:51-68, 1979.
28.    Hammer J. Health Research and Decision Making. In: Sayers B. Health Assessment – complexity, trends and opportunities. Geneva, WHO – Global Advisory Committee for Health Research, 1999 (Appendix I).
29.    Hansluwka H. Measuring the Health of Populations. Indicators and Interpretations. Social Science and Medicine 24(12):1207-1224, 1985.
30.    Humber JM, Almeder R (eds.) What is Disease? New Jersey, Humana Press, 1997.
31.    Kaplan B, Cassel J, Gore S. Social Support and Health. Medical Care 15(5): 47-58, 1977.
32.    Kaufman F. Disease: Definition and Objectivity. In: Humber R, Almeder J. (eds.) What is Disease. Totowa, NJ, Humana Press, 1997, p. 269-286.
33.    Lalonde M. A New Perspective on the Health of Canadians. Ottawa, Information Canada, 1974.
34.    Linder F. The health of the American people. Scientific American 214(6):21-29, 1966.
35.    Loomes G, MacKenzie L. The Use of QALYS in Health Care Decision Making. Social Science and Medicine 28: 299-308, 1989.
36.    McDowell I, Newell C. Measuring Health: A Guide to Rating Scales and Questionnaires. New York, Oxford University Press, 1987.
37.    Moriyama I. Problems in the measurement of health status. In: Sheldon E, Moore W (eds.) Indicators of Social Change. New York, Russel Sage Foundation, 1968, p. 573-600.
38.    Murphy E. The Logic of Medicine. Baltimore, Johns Hopkins Univ. Press, 1965.
39.    Murray CJL, Lopez AD. Evidence-based health policy – Lessons from the Global Burden of Disease Study. Science 274(5288):740-743, 1996.
40.    Murray CL, Acharya AK. Understanding DALYs. Journal of Health Economics 16:703-730, 1997.
41.    Murray CL, Lopez A. The Global Burden of Disease. Cambridge, Harvard University Press (WHO-The World Bank), 1996.
42.    Murray CL. Quantifying the Burden of Disease: the technical basis for disability-adjusted life years. Bulletin of the World Health Organization 72:429-445, 1994.
43.    Murray CL. Rethinking DALYs. In: Murray CL, Lopez A. The Global Burden of Disease. Cambridge, Harvard University Press (WHO-The World Bank), 1996.
44.    Noack H. Concepts of Health and Health Promotion. In: Abelin T, Brzezinski Z, Carstairs V (eds.) Measurement in Health Promotion and Protection. Copenhagen, WHO Regional Publications, European Series # 22, 1987, p. 5-28.
45.    Nordenfeld L, Odelstad J (eds.) Health, Disease, and Causal Explanations in Medicine. Dordrecht, D. Reidel, 1984.
46.    Nordenfeld L. On the Nature of Health. Dordrecht, D. Reidel Publ. Co., 1987.
47.    Nutbeam D. Evaluating Health Promotion – Progress, problems and solutions. Health Promotion International 13: 27-43, 1999.
48.    OMS/UNICEF Alma-Ata, 1978. Cuidados Primários de Saúde. Brasília, 1979, 64p. Relatório da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, Alma-Ata, URSS, 6-12 de setembro de 1978.
49.    Paim J. A Reforma Sanitária e os Modelos Assistenciais. In: Rouquayrol MZ, Almeida Filho N. Epidemiologia & Saúde. Rio de Janeiro, Medsi, 1999, p. 473-487.
50.    Patrick D, Erikson P. Health Status and Health Policy: Quality of Life in Health Care. New York, Oxford University Press, 1993.
51.    Pérez-Tamayo R. El concepto de enfermedad. Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1988.
52.    Rada J, Rati M, Howden-Chapman P. Evidence-based purchasing of health promotion: methodology for reviewing evidence. Health Promotion International 14(2):177-188, 1999.
53.    Reznek L. The Nature of Disease. London, Routledge & Keegan Paul, 1987.
54.    Robine J-M. Measurement of states of health in populations: dimensions and levels. In: Sayers B. Health Assessment – complexity, trends and opportunities. Geneva, WHO – Global Advisory Committee for Health Research, 1999 (Appendix III).
55.    Robine J-M. Romieu I, Cambois E. Health Expectancy Indicators. Bulletin of the World Health Organization 77(2): 181-185, 1999.
56.    Sanders B. Measuring community health levels. American Journal of Public Health 54(7): 1063-1070, 1964.
57.    Signal L. The politics of health promotion: insights from political theory. Health Promotion International 13(3):257-263, 1998.
58.    Sullivan DF. A single index of mortality and morbidity. HMSHA Health Reports 86(4): 347-355, 1971.
59.    Temkin O. The Scientific Approach to Disease: Specific Entity and Individual Sickness. In: Crombie A (ed.) Scientific Change: Historical Studies in the Intellectual, Social and Technical Conditions for Scientific Discovery. New York, Basic Books, 1963, p. 629-647.
60.    Terris M. Aproximaciones a una epidemiología de la salud. In: Terris M. La Revolución Epidemiológica y la Medicina Social. México, Siglo XXI, 1980, p. 39-60.
61.    Uemura K. Application of indicators for monitoring progress towards health for all by the year 2000. In: Abelin T, Brzezinski Z, Carstairs V (eds.) Measurement in Health Promotion and Protection. Copenhagen, WHO Regional Publications, European Series # 22, 1987, p. 643-652.
62.    WHO. International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps. Geneva, World Health Organization, 1980.
63.    WHO. Progress Report – DALY Review Group. ACHR Subcommittee on Health Measurement. Genebra, World Health Organization, outubro, 1996.
64.    Williams A. QALYs and Ethics: A Health Economist’s Perspective. Social Science and Medicine 43(12): 1795-1804, 1996.
65.    Williams A. The importance of quality of life in policy decisions. In: Walker S, Rosser R. (eds.) Quality of Life: Assessment and Application. Dordrecht, MTP, 1993, p. 427-439.
66.    Williams A. The nature, meaning and measurement of health and illness: an economic viewpoint. Social Science and Medicine 20(10): 1023-1027, 1985.
67.    Wolfson A. Health-adjusted life expectancy. Health Reports (Statistics Canada) 8(1):41-46, 1996.
68.    World Bank. World Development Report 1993: Investing in Health. New York, Oxford University Press, 1993.
69.    WRR Netherlands. Volksgezondheidszorg (English Translation). The Hague, Scientific Council for Government Planning, 1997.


Quadro 1 – Graus de Severidade, Pesos e Condições-índice de Incapacidade do projeto GBD.

Grau
Peso
Condição-índice
1
0,00 – 0,02
Vitiligo, Baixo Peso
2
0,02 – 0,12
Diarréia, Anemia Severa
3
0,12 – 0,24
Infertilidade, Artrite, Angina
4
0,24 – 0,36
Amputação de Membro Inferior, Surdez
5
0,36 – 0,50
Fístula Retovaginal, Retardo Mental Moderado
6
0,50 – 0,70
Depressão Unipolar, Cegueira, Paraplegia
7
0,70 – 1,00
Psicose Grave, Demência, Quadriplegia

Fonte: Adaptado de Murray & Acharya, 1997 (Ref. 54).